Cine Retro Boavista Especial: A Paixão de Cristo Segundo a Sétim Arte.

Por Paulo TellesBlog Cine Retro BoaVista

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Com base em artigo publicado pelo próprio autor em 5 de abril de 2012 no extinto blog Filmes Antigos Club – A Nostalgia do Cinema.

A Vida de Nosso Senhor Jesus Cristo – 1905. De Ferdinand Zecca

Especial: O Evangelho Segundo Os Cineastas e a Sétima Arte.

Por Paulo Telles – em 5 de abril de 2012

Celebrando a passagem da Semana Santa, vamos aqui relembrar algumas das montagens cinematográficas sobre a vida e a paixão de Jesus Cristo. Sabemos que desde os primórdios da Sétima Arte, os pioneiros investiram em diversas adaptações dos Evangelhos. Acredita-se que mais de duas mil versões foram realizadas sobre a vida do homem que dividiu o tempo antes e depois dele. Seria impossível enumerar todas as películas feitas sobre a vida do Redentor da Humanidade. No presente artigo, ilustraremos os mais importantes no hagiográfico tema religioso no cinema. Contudo, para elaboração e análise aprofundada de cada um destes filmes teremos que fazer uma breve retrospectiva sobre este personagem enigmático, que ao longo de 2.000 anos vem atraindo artistas de todos os gêneros, escritores, teólogos, e estudiosos, e que fora do Novo Testamento poucas referências ainda temos sobre sua vida pública.

VITRAL

Quem foi o homem Jesus?

O que todos sabemos sobre a vida de Jesus Cristo, o Messias, nos é contada nas páginas da Bíblia Sagrada. O filho de Deus nascido de uma mulher virgem por intercessão do Espírito Santo. Sua vida é a mais bela história de amor ao próximo. O calvário, a cruz, a crucificação do Messias. Aquele que veio para salvar a humanidade através de sua paixão, morte e ressurreição. Pesquisas atuais mostram que Jesus foi um revolucionário em seu tempo, sua inteligência e visão futurista eram avançadas demais para a época em que viveu. Um rebelde pregador, que incomodava a elite de Jerusalém e os governantes. Em apenas trezentos após sua morte, a igreja Católica já detinha o poder no mundo Ocidental, graças aos feitos do Imperador Constantino, O Grande.

JESUS EXPULSA OS VENDILHÕES DO TEMPLO

O que intriga os pesquisadores dos escritos do novo evangelho é saber como uma pessoa vinda simples conseguiu em tão pouco tempo converter tanta gente. Os milagres feitos em vida seria um dos motivos. A expansão rápida do cristianismo nos aponta para os milagres realizados por Cristo. Coisas fantásticas devem ter ocorrido diante dos olhos da população da época e mudado a mente daqueles cidadãos que foram convertidos ao cristianismo. Os milagres aconteceram, mas é impossível se provar algo a esse respeito, visto a precariedade dos relatos deixados desde então.A principal fonte sobre Jesus são os quatro evangelhos canónicos (Mateus, Marcos, Lucas e João) a que se somam outras fontes cristãs, como os evangelhos apócrifos, e um número escasso de fontes não cristãs. Estas fontes providenciam poucas informações sobre o Jesus histórico.

JESUS DIANTE DE CAIFÁS

De acordo com alguns historiadores, estes textos foram escritos entre setenta a cem anos após a morte de Cristo. Eles recontam em pormenores a vida pública de Jesus, ou seja, o período de pregações nos últimos anos da sua vida. No entanto, há limitadas informações sobre sua vida privada. Representam os principais documentos em que convergem os trabalhos hermenêuticos dos historiadores. Na atualidade, diversas escolas com diferentes pontos de vista sobre a confiabilidade dos evangelhos e a historicidade de Jesus têm se desenvolvido. Em algumas obras de autores antigos não cristãos estão algumas referências esparsas sobre Jesus ou seus seguidores. A mais antiga destas obras é o Testimonium Flavianum. Alguns historiadores consideram tais referências como interpolações posteriores de copistas cristãos. Jesus foi um profeta e, como todos eles, desmascarou as hipocrisias e a falta de fé dos homens de sua época. E foi mais longe: Desafiou as autoridades religiosas de seu tempo, rompendo com tradições e costumes de sua época, trazendo novos ensinamentos. Foi assim quando expulsou os vendedores do templo, foi assim quando conversava, se alimentava, e convivia com os gentios (ou mesmo pagãos, considerados impuros), e foi assim quando chamava os fariseus (poderosa facção política/religiosa da época) de hipócritas e aproveitadores. Foi assim quando se aproximava das mulheres samaritanas (um tabu para a época), quando curava judeus e pagãos. Tudo isto chocava e escandalizava naqueles dias.

JESUS COROADO DE ESPINHOS

O poder religioso, percebendo a sabedoria de Jesus, percebendo que a doutrina Dele convertia muitas pessoas, percebendo que ele era contrário ao sistema religioso vigente, decidiu matá-lo. A liberdade de expressão sempre incomodou quem esteve no poder. Armaram uma cilada para Jesus, prenderam-no à surdina, de madrugada, aproveitando a festa da Páscoa.Jesus não foi morto nem pelo povo judeu e nem pelos romanos. Jesus foi morto pela elite do sistema religioso, pelos chefes dos sacerdotes, pelos doutores da lei, pelos hipócritas, pelos verdadeiros sepulcros caiados e guias cegos, pela raça de víboras, pelos que gostam dos lugares de honras nos banquetes e das primeiras cadeiras nas sinagogas. Foram essas pessoas, que eram em número elevado, que o acusaram de blasfêmia, e gritaram: Crucifiquem-no! Crucifiquem-no!

Este foi o homem Jesus, e seu tempo!

As primeiras representações cênicas da Paixão: Arte e Interpretação.

DIVULGAÇÃO DA LA PASSION DE 1898

As narrativas bíblicas sempre inspiraram representações visuais. No passado, essas aconteciam através de quadros, vitrais e retábulos. Numa época em que a leitura era privilégio de elites, a Igreja encontrou uma forma de contar as estórias da salvação e gravá-las no imaginário popular por meio da pintura ou de outras técnicas de arte visual. As representações visuais da anunciação, do batismo de Cristo, de eventos de seu ministério e, principalmente da crucificação fazem parte da herança. Desde o início, o cinema partiu para a hagiografia, evocando interpretações que vieram a marcar épocas, e deixando na emulsão imagens tão significativas e diversas de Cristo, assim como é na pintura. Muito embora a figura pictórica do personagem não seja a verdadeira, foi a imaginação dos pintores que vieram a influenciar muitos dos cineastas que ousaram a filmar a vida de Jesus. Entretanto, para corporificar Jesus nas telas de cinema, o cinema adotou, na maior parte dos casos, o conceito europocêntrico: Jesus seria alto ou ruivo, louro e de olhos azuis. Difícil, uma vez que nasceu na Ásia Menor, o que certamente gera a impossibilidade de ter nascido com a pele dos escandinavos. Se ele nasceu e viveu as margens do Mediterrâneo, teria a pele caracteristicamente bronzeada.

A PAIXÃO DE LUMIERE – 1897

Cineastas Pioneiros

No início, era a fotografia animada e o silêncio dos claustros. Com um olho no capital empatado e com o outro nos lucros de retorno, a Casa Lumiere, ao que se tem registro, foi a primeira a lançar, em 1897, a Paixão de Cristo, rodada em Horitz, na Boêmia, com atores amadores interpretando o drama tal como é, até hoje, encenado em Oberammergau, na Baviera, nos alpes germânicos, a cada dez anos (na verdade, desde 1634, mais de três séculos). O filme repetia, em 14 quadros, os passos do martírio de Cristo a caminho do Gólgotha, com 250 metros de filme com duração de 15 minutos, que constituíram um marco até então. Não era exatamente um filme, mas uma história em quadrinhos transposta para a tela, um teatro filmado, reproduzindo os “mistérios da paixão” de maneira medieval que continuava no Iluminismo renascentista e se estende até hoje em muitas dramatizações. O filme de Lumiere custou U$$ 500 dólares, mas foi vendido por 10 mil para os Estados Unidos, onde rendeu muitos, milhares mais. Hoje, não se sabe sobre sua ficha técnica.

A PAIXÃO DE LUMIERE – 1897

Evidente que havia certos concorrentes que endoidaram de ambição. A Pathé produziu e lançou, ainda em 1897, a sua Paixão , feita pelo cinegrafista Lear e interpretada pelos alunos do Colégio São Nicolau, de Paris, que costumava encena-la na Feira dos Inválidos. s americanos, no entanto, não dormiram no ponto. Um certo dono de um museu de cera, filmou, no mesmo ano, sua Paixão de Cristo, no alto de um hotel nova-iorquino; o diretor foi o primeiro a dar um tratamento gramaticalmente condizente ao novo meio de expressão: Um precursor, David W. Griffith (1875-1948), o primeiro grande cineasta de todos os tempos. O intérprete de Cristo neste drama de Griffith, como da produção da Pathé anterior e o da que se segue foram esquecidos. A quarta Paixão, de 1897 foi produzida por Sigmund Labin, de Filadélfia, que era em verdade um plagiário e um inescrupuloso, que produziu um filme no qual apareciam curiosos assistindo as filmagens de uma janela próxima do palco de filmagem.

Os Principais Filmes Sobre a Paixão de Cristo

Vida, Morte e Paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo, o Salvador – França (1905). Direção: Ferdinand Zecca.

VIDA, PAIXÃO E MORTE DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, O SALVADOR (1905), de Ferdinand Zecca.

A produção, em verdade, foi iniciada em 1902, mas terminada em 1905 pelo pioneiro francês Ferdinand Zecca (1864-1947). A estética desta obra é a mesma dos presépios de natal e dos quadros da paixão em igrejas, todos de inspiração na arte sacra medieval – com pouca e tosca, ou nenhuma perspectiva (pois o que mais importa aqui é a mensagem do conteúdo; é uma arte exclusivamente pragmática e didática a arte devota). A contribuição especificamente cinematográfica do filme de Zecca, este promove a movimentação da câmera em desajeitadas panorâmicas que procuram mostrar a totalidade e grandeza dos cenários.

A PAIXÃO DE ZECCA (1905), França

A Paixão de Zecca fez um estrondoso sucesso, ganhando uma nova versão em 1907 e abrindo caminho para uma nova etapa no nascimento e no desenvolvimento da Sétima Arte: o Filme de Arte. É Considerado, no tributo religioso, um dos cem melhores filmes de acordo com a Santa Sé, na lista realizada em 1995 pelo Vaticano, na categoria religião.

Da Manjedoura a Cruz – Estados Unidos (1912). Direção: Sidney Olcott.

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O primeiro filme com uma narrativa ininterrupta foi Från krubban till korset –Ou no inglês, From the Manjer to the Cross (1912) – Da Manjedoura à Cruz – produção americana, apesar do título sueco, e que tem o ator inglês Robert Henderson-Bland (1876-1941) como protagonista. Pode-se dizer que este foi o primeiro ator a encarnar Jesus Cristo oficialmente no cinema, com devido crédito. Dirigido por Sidney Olcott (1873-1949), cineasta que dirigiu a primeira versão de Ben-Hur, de 1907, e filmado na Terra Santa ao custo de 35 mil dólares, obtendo o lucro de um milhão. Olcott também faz uma ponta como ator, desempenhando o homem cego curado por Jesus.

ROBERT HENDERSON-BLAND COMO CRISTO EM “DA MANJEDOURA A CRUZ”, de SIDNEY OLCOTT (1912)
PAPA PIO XI

Outro ator pioneiro a interpretar Cristo foi o francês Jacques Gulhène, numa versão da Paixão, de 1911. Em 1913, o Papa Pio XI (1857-1939) proibiu o uso de filmes religiosos e a representação de cenas do Evangelho. No entanto, isto não intimidou os produtores, que continuariam a explorar o assunto, pois a economia de mercado exigia, segundo o saudoso escritor Salvyano Cavalcanti de Paiva (em seu artigo sobre o tema em um número da revista Cinemin), exigia até mesmo de abusar da explicitude.

O Rei dos Reis – Estados Unidos (1927). Direção: Cecil B. DeMille.

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O produtor e diretor Cecil B. DeMille (1881-1959) ousou corajosamente romper a proibição do Papa, em 1927, realizando uma das obras mais sérias e importantes da hagiografia cristã: O Rei dos ReisThe King Of Kings, da Pathé americana (mais tarde formada pela Paramount, que iria não somente distribuir esta obra, mas as demais produções do diretor). Espetáculo de grandiosidade cênica, colocou no elenco 156 atores e atrizes notórios, e milhares de figurantes. O intérprete de Jesus foi é um ator de envergadura: H. B. Warner (1876-1958), que cumpriu a missão com intensa habilidade e carisma.

H. B. WARNER (ao lado de Joseph Schildkraut como Judas e Joseph Striker como discípulo João) na Paixão de Cecil B. DeMille O REI DOS REIS (1927)

De Mille obrigava os atores e toda a equipe técnica a participarem de cultos religiosos antes das filmagens, e rodou a crucificação de Cristo em plena noite de Natal. Apresentava contratos para que seus atores não fumassem ou bebessem em público, ou dirigissem carros caríssimos, para que não comprometessem com suas “sagradas imagens” no filme. H.B.Warner, durante a produção do filme, envolveu-se num sério escândalo com uma mulher que ameaçou arruinar sua carreira e a própria reputação do trabalho de DeMille caso Warner não a assumisse. Acredita-se que para evitar maiores problemas, DeMille teria pago a esta mulher para que ela deixasse Warner em paz e saísse dos Estados Unidos, e assim, não atrapalhasse o andamento das filmagens.

VICTOR VARCONI interpreta Pilatos em O REI DOS REIS (1927) de Cecil B. DeMille.

DeMille usou outros grandes nomes para compor sua obra sacra, como Dorothy Cummings (1899-1983), como Maria; Ernest Torrence (1878-1933) como Pedro; Victor Varconi (1891-1976) como Pilatos; William Boyd (1895-1972), o futuro cowboy Hoppalong Cassidy das nostálgicas matinês, como Simão Cireneu; o futuro ganhador do Oscar Joseph Schildkraut (1896-1964) como Judas, e seu pai, Rudolph Schildkraut (1862–1930), como Caifás. DeMille inicia com a vida pública de Jesus. Não se cita seu nascimento ou batismo por João Batista, e tudo começa com Maria Madalena (Jacqueline Logan, 1901–1983), a rica cortesã, irada com o sumiço de seu amante Judas Iscariotes (Joseph Schildkraut), que descobre que ele entrou para o grupo de Jesus. Revoltada, ela dirige-se a Cristo, que a exorciza dos famosos Sete Pecados Capitais. Uma ideia mirabolante concebida pela genialidade de DeMille junto a sua escritora e colaboradora, Jeanie Macpherson (1887–1946).

JACQUELINE LOGAN vive Maria Madalena em O REI DOS REIS (1927) de DeMille
O jovem WILLIAM BOYD, futuro cowboy Hoppalong Cassidy, como Simão Cirineu, ajudando Jesus em sua dolorosa subida ao Calvário em O REI DOS REIS, de DeMille, 1927.

Anos mais tarde, um pastor protestante foi conhecer H.B.Warner, e lhe confidenciou: Quando menino, eu vi o senhor no filme The King Of Kings. Hoje, toda vez que penso no meu mestre, é o seu rosto que encontro.

Golghota – França (1935). Direção: Julien Duvivier.

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Estreado no Brasil com o subtítulo de “O Grande Drama da Humanidade”, e baseado no romance “O Mártir do Gólgota”, de Enrique Perez Escrich (1829- 1897), Golghota foi produzido na França em 1935 e dirigido por Julien Duvivier (1896-1967). Além de obter aplausos de grandes críticos da época, foi rotulado pelo jornal francês Le Salut Public, como “a melhor construção da Antiguidade até agora conseguida”. Esta obra de Duvivier foi reprisada nos cinemas do Rio de janeiro na década de 1950, sob o título original do romance de Escrich. A fita comprova a qualidade do intérprete de Cristo, Robert Le Vigan (1900-1972), sério, veemente, distanciado da linha do Cristo apostólico romano. Um Cristo quase hierárquico, cujo o roteiro tem um diálogo fiel ao espírito do Evangelho, dito por astros como Harry Baur (1880-1943) como Herodes Antipas; Jean Gabin (1904-1976), como Pilatos; Edwige Feuillère (1907–1998), como Prócula, esposa de Pilatos; e Lucas Gridoux (1896–1952), como Judas.

ROBERT LE VIGAN como Jesus Cristo na obra de Julien Duvivier O GOLGHOTA, realizado na França em 1935
O GOLGHOTA (1935): A Paixão segundo Julien Duvivier

Robert Le Vigan, o intérprete de Cristo, após a conclusão desta magnífica obra de Duvivier (uma das melhores sobre a vida de Jesus), tornou-se popular e bastante requisitado por muitos diretores franceses, mas quando a França foi invadida pelos alemães durante a II Guerra, tornou-se um membro radical do “Parti Populiste Français”, um direitista partido pró-fascista , e não escondeu seu apoio ao anti-semitismo, além de colaborar com as autoridades nazistas. Com o fim do conflito em 1945, Le Vigan enfrentou vários processos e prisões, passando seus últimos anos de vida pobre e louco na Argentina, vindo a falecer em 1972.

Rei dos Reis – EUA (1961). Direção: Nicholas Ray

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Em 1961, Nicholas Ray (1911-1979) juntamente com o produtor Samuel Bronston (1908-1994) realizou uma das obras mais importantes da vida de Jesus Cristo, um tributo à iconografia cristã, estabelecida desde que Lumiere realizou sua La Passion em 1897: Rei dos Reis (King Of Kings, 1961). A obra de Ray, a penúltima em sua primorosa filmografia, foi rodada na Espanha, acarretando divisão de opiniões, tanto por parte da crítica, do público, e de líderes religiosos cristãos. Não contente de apenas se inspirar nas pesquisas dos maiores estudiosos sobre o tema, Ray, juntamente com o produtor Bronston, teve uma audiência com o Papa João XXIII (1881-1963), ao qual pediram sugestões para a coordenação e distribuição de cenas. Ray escalou seu colaborador Philip Yordan (1913-2004), para confeccionar o script, que enfileira os principais episódios do Evangelho em seus 168 minutos de projeção, segundo uma postura cênica, hierática, e comovedora.

A licença poética de Nicholas Ray ao pôr JEFFREY HUNTER como Jesus Cristo em seu espetacular drama da Paixão REI DOS REIS (1961).

Dificilmente, algum perito em maquiagem faria o mesmo com o rosto de Jeffrey Hunter (1926-1969), o intérprete de Cristo. Nas palavras do saudoso crítico de cinema brasileiro Paulo Perdigão, Hunter era um ator cuja beleza apolínea com cativantes olhos azuis proporcionaram a ele um triste destino, ao morrer com apenas 42 anos, em 27 de maio de 1969, ao cair de uma escada dentro de casa. Com a escolha de Hunter (decerto o mais belo Cristo idealizado nas telas!), somada ao brilhante roteiro de Yordan, o filme ajustou com perfeição a imagem de Cristo ao seu verdadeiro ambiente, respeitando acontecimentos históricos daqueles tempos agitados, Rei dos Reis se tornou um espetáculo tradicional e um dos preferidos em reprises da Semana Santa pela TV. A fita, motivada pelo script de Yordan, alivia até mesmo a culpabilidade da morte de Jesus pelos judeus, dando a entender que foi uma conspiração do Império Romano, que durante três anos vinha investigando os passos do Nazareno e de seus discípulos.

JEFFREY HUNTER como Cristo em REI DOS REIS (1961) de Nicholas Ray

Jeffrey Hunter atua como Jesus com inigualável carisma a altura do personagem. Sereno, sublime, humano, mas, ao mesmo tempo, colocado acima dos mortais. Ele declarou a uma revista americana, em março de 1962, um ano depois do lançamento do filme, a respeito de seu desempenho como Jesus:

Não compreendi totalmente minha responsabilidade até achar-me nas vestes de Jesus, subindo a montanha para a cena do sermão das bem-aventuranças. Para minha surpresa, muitos habitantes do vilarejo caíram de joelhos enquanto eu passava. Eles sabiam muito bem que eu era um mero ator, porém sentiram que, de alguma forma, eu era uma representação viva de uma figura que lhes era sagrada desde a infância. Eu não sabia o que fazer… foi aí que me conscientizei do que aceitara representar.

ECCE HOMO! O Cristo (Jeffrey Hunter) coroado de espinhos na cabeça em REI DOS REIS (1961), a Paixão de Nicholas Ray.

Hunter ainda continuou:

Senti minha responsabilidade crescer à medida que o filme prosseguia, e sinto-a ainda mesmo que o filme tenha terminado. Não creio, entretanto, que sou maior conhecedor de Cristo do que qualquer outra pessoa. Minha educação religiosa foi como a de qualquer criança americana. Conhecia a Bíblia, é claro, a história de Jesus era sagrada, mas nunca havia pensado muito sobre ele como Pessoa, de carne e sangue, como um Homem que viveu neste mundo como nós vivemos, entre pessoas e em um tempo não diferente dos atuais. Ao estudar o script, e enquanto prosseguia minha pesquisa, comecei a compreender pela primeira vez o significado de Sua vida e o que os Seus ensinamentos trouxeram ao mundo.

Convidado especial de Nicholas Ray, ROBERT RYAN, ótimo ator, interpreta o profeta João Batista

No elenco, grande maioria de atores não muito notórios, mas que dão grande suporte à trama bíblica: a irlandesa Siobhán McKenna (1923-1986) como Maria; o ator alemão muito conceituado na Europa Gerard Tichy (1920-1992) como José; Hurd Hatfield (1917-1998) como Pôncio Pilatos; Rip Torn (1931-2019) é Judas; Rita Gam (1927-2016) é Herodiades; o canadense Frank Thring (1927-1994) como Antipas; Carmen Sevilla (1930-2023) como Maria Madalena; Antonio Mayans (creditado como Jose Antonio) como o jovem discípulo João; Ron Randell (1918-2005) é o Centurião Lucios; Royal Dano (1922-1994) é Simão Pedro; Viveca Lindfors (1920-1995) é Prócula, esposa de Pilatos; Harry Guardino (1925-1995) como Barrabás; Brigid Bazlen (1944-1989) é Salomé; e Robert Ryan (1909-1973) o mais famoso do cast e ator de grande estirpe, como João Batista.

A atriz e cantora espanhola CARMEN SEVILLA, falecida em 2023, como MARIA MADALENA
A PAIXÃO SEGUNDO NICHOLAS RAY

Rei dos Reis é um monumento esplendoroso, incapaz de arranhar o fervor das grandes plateias a santificada imagem de Cristo. Mesmo que, na época de seu lançamento, críticos arredios ao cinema de Nicholas Ray – um dos mais competentes cineastas do Século XX que foi um caloroso defensor da juventude desajustada- tivessem maldosamente crismado o filme como I Was a Teenage Jesus (Eu fui um Jesus adolescente), comparando talvez Jeffrey Hunter ao rebelde sem causa de James Dean, em Juventude Transviada (1955), obra do diretor. A narração, em off, é de Orson Welles, que não foi creditado, com belíssima trilha sonora de Miklos Rozsa (1907-1995).

O Evangelho Segundo São Mateus – Itália (1964). Direção: Pier Paolo Pasolini

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Mas nem todos os cineastas ofereceram uma iconografia aos moldes do imaginário cristão. Em 1964, o diretor italiano Pier Paolo Pasolini (1922-1975), marxista e ateu, lança O Evangelho Segundo São Mateus, a versão mais polêmica da vida de Cristo (ao lado de A Última Tentação de Cristo de Martin Scorsese, 1988). Sem a aura de santidade expressa em Rei dos Reis (1961) de Nicholas Ray, A Maior História de Todos os Tempos (1965) de George Stevens e Jesus de Nazaré (1977) de Franco Zeffirelli, mas também sem recair no exotismo das óperas rock contidas em Jesus Cristo Superstar e Godspell, a esperança, o Cristo vivido pelo estudante espanhol Enrique Irazoque (1944-2020) é um Messias bárbaro, um agitador das massas que usa seus sermões em defesa dos oprimidos, com o intuito de transformar um mundo socialmente injusto. Segundo cineasta, ele encontrou em Irazoqui um rosto belo e fero, humano e destacado dos Cristos pintados por El Greco. “Eu vim trazer a espada e não a paz”, declarou Pasolini e Mateus em seu Evangelho.

O estudante espanhol ENRIQUE IRAZOQUE é o Cristo de O EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS, de Pier Paolo Pasolini, feito em 1964.

Pode-se perguntar do por que de um ateu como Pasolini se interessar em filmar a vida de Cristo. Muito simples: a figura de Cristo exercia nele uma fascinação não religiosa, mas poética e política. E em Cristo ele admirava sua poesia, força, e carisma. Apenas não aceitava Jesus conforme a Igreja Católica e a teologia, mas acreditava que a mensagem de Jesus conforme o Evangelho de Mateus era revolucionária, ao passo que, para o cineasta italiano, Cristo era uma personalidade corajosa, rebelde, e revolucionária tal qual sua mensagem. Era o Cristo que ia salvar o povo não das penas do inferno, mas da própria ignorância do ser humano.

JESUS E SEUS DISCÍPULOS em O EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS (1964) de Pasolini

A Igreja e os fiéis censuraram Pasolini pela falta de doçura do intérprete de Jesus, no entanto era um Cristo destinado a ser um nativo rebelde à prepotência colonialista profeta apocalíptico da riqueza ilícita, de açoite em punho fazendo a reforma agrária para perplexidade e horror dos falsos pregadores e beatos apegados à propriedade privada, que certamente, não leram a encíclica Populorum Progressio, e vieram a combater o Concílio Vaticano II, iniciado por João XXIII e só terminado na gestão de Paulo VI.

O EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS (1964) – A Paixão segundo Pasolini

Como não deixara de ser, houve protestos violentos contra o filme, e a extrema direita jogou ovos podres no Palácio do Festival de Veneza durante seu lançamento, e, paradoxalmente, acabou ganhando o prêmio do Escritório Católico Internacional de Cinema, e cuja obra foi dedicada à memória de João XXIII, por Pasolini considera-lo o papa mais próximo das ideias progressistas do evangelista Mateus, que procurou mostrar Jesus Cristo para os judeus como o Messias esperado, o Messias das profecias, enfim, o Messias do povo. O filme foi rodado em austeros cenários da Calábria e obedece o tom sublimis et humilis do texto bíblico, numa linguagem despojada e naturalista que a muitos críticos recordou o estilo ascético de Dreyer (A Paixão de Joana D’Arc) e Rossellini (Francisco, arauto de Deus), sublinhando a longa narrativa de 138 minutos de projeção, e uma partitura musical com temas de Bach, Mozart, Prokofiev, “negro spiritual” e música sacra congolesa. Em 1995, quando o cinema completou 100 anos de existência, O Evangelho Segundo São Mateus foi incluso entre os 100 melhores filmes de acordo com o Vaticano, que elaborou uma intensa lista, na categoria de Religião, ao lado de obras como A Vida e paixão de Nosso Senhor Jesus Cristo (1905) de Ferdinand Zecca, Nazarin (1959) de Luis Buñuel, e Ben-Hur (1959) de William Wyler.

A Maior História de Todos os Tempos – Estados Unidos (1965). Direção: George Stevens.

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Após o lançamento de Rei dos Reis em 1961, o diretor George Stevens (1904-1975), responsável por clássicos como Gunga Din, Os Brutos Também Amam e Assim Caminha a Humanidade– manifestou interesse em filmar a vida de Jesus Cristo de forma que pudesse ser a “versão definitiva”. Para isso, o cineasta consumiu seis anos de produção e fez reunir um grande elenco, com 117 papéis dialogados, com muitos atores famosos, em grande parte em pequenas pontas, baseando-se no livro A Maior História de Todos os Tempos (The Greatest Storie Ever Told), de Fulton Oursler (1893–1952), além dos textos do Novo Testamento. Sua intenção era contar a vida do grande líder da Cristandade com um elenco All-Star, rodada em locações do Arizona, Utha, Nevada, e em estúdios da MGM em Culver City, Califórnia- mas que veio a fornecer um panorama em estilo Cartão Postal, com narrativa hiper- acadêmica, com conceituação medievo-renascentista.

MAX VON SYDOW estreia em Hollywood como Jesus em A MAIOR HISTÓRIA DE TODOS OS TEMPOS (1965) de George Stevens.

Narrado de forma majestosa e clássico rigor estilístico, a obra de Stevens teve apoio de diversos roteiristas, como o poeta Carl Sandburg (1878-1967). A Maior História de Todos os Tempos foi o penúltimo filme do cineasta, rendendo um espetáculo grandioso. Originalmente lançada com 225 minutos de duração (exibida no Brasil com 10 minutos a menos, a versão hoje a disposição em DVD), mas a metragem original seria de 260. Em alguns países, foi lançado com 141 minutos, inclusive na época do Vídeo Home System (VHS), foi esta a duração lançada no mercado de vídeo. Destaque para a beleza pictórica (consultoria a cores do mestre Eliot Elisofon) e o esplendor lírico e dramático de uma encenação suntuosa. Em especial realce, a sequência da ressurreição de Lázaro (Michael Tolan, 1925-2011) ao som de Aleluia de Handel, que é um dos grandes momentos do filme. Elenco vigoroso: Carroll Baker, como Verônica; Richard Conte (1910-1975), como Barrabás; Jose Ferrer (1912-1992) como Herodes Antipas; Ina Balin (1937-1990) como Martha de Betânia; Van Heflin (1910-1971) como Bar Armand; Martin Landau (1928-2017), como Caifás; Sal Mineo (1939-1976); Neremiah Persoff (1919-2022).

VAN HEFLIN, ED WYNN e SAL MINEO estão entre os intérpretes de A MAIOR HISTÓRIA DE TODOS OS TEMPOS (1965) de George Stevens

Telly Savalas (1922-1994) que raspou definitivamente seu cabelo para viver Pôncio Pilatos; David McCallum (1933-2023) como Judas; a carismática e talentosa Dorothy McGuire (1916–2001), como Maria; Angela Lansbury (1925-2022) como Prócula; Claude Rains (1889-1967) como Herodes o Grande; Sidney Poitier (1927-2022) como Simão de Cireneu; Pat Boone como o anjo da Ressurreição; Sal Mineo (1939-1976) como Uriah; Charlton Heston (1923-2018), o ícone do cinema épico, como João Batista; John Wayne (1907-1979) numa curta aparição como o soldado que conduz Cristo até ao Calvário e perante a cruz recita: “este homem era realmente o Filho de Deus”.

TELLY SAVALAS como Pôncio Pilatos em A MAIOR HISTÓRIA DE TODOS OS TEMPOS (1965) de George Stevens
A VIA CRUCIS de George Stevens, com Max Von Sydow no papel de Jesus.

E um dos atores favoritos de Bergman, Max Von Sydow (1929-2020), estreando em Hollywood como Jesus. Apesar de um trabalho primoroso por parte de George Stevens, o filme não teve o retorno tão esperado pelo diretor, prejudicado pela alta metragem e excesso de personagens, além do desgaste das superproduções bíblicas que já percorria ao longo da década de 1960. A Música também é outro ponto culminante, uma das últimas composições do mestre Alfred Newman (1901-1970), o mesmo compositor de A Canção de Bernadette e O Manto Sagrado.

Jesus de Nazaré – Itália/Inglaterra (1977). Direção: Franco Zeffirelli.

JESUS DE NAZARÉ – 1977

Embora requintada produção feita para a TV italiana, Jesus de Nazaré, de 1977, dirigida por Franco Zeffirelli (1923-2019) foi exibida nas nossas salas de cinema do Brasil (como em grande parte do mundo!) em duas partes, totalizando 6 horas de projeção. Na TV brasileira, estreou na Rede Globo em 1981, como mini-série em capítulos. Jesus Cristo volta aqui a sua moda tradicional, mas o sensível cineasta de Romeu e Julieta (1968) não satisfeito, consultou católicos, protestantes, judeus, e até islamitas. Filmado na Tunísia, Itália e na Inglaterra, mesmo com toda reverência excessiva a figura de Jesus, acarretou protestos e o filme acusado de herético por alguns fanáticos católicos, por apresentar Maria (interpretada por Olivia Hussey) gemendo as dores do parto.

Robert Powell, o Cristo de Zeffirelli, entre Simão Pedro (James Farentino) e Judas (Ian McShane)

Com dramaticidade de uma grande telenovela, José (Yorgo Voyagis) é aconselhado pelo rabino Yehuda (Cyril Cusack, 1910-1993) a continuar com sua mulher grávida por obra do Espírito Santo. A trilha sonora de Maurice Jarre (1924-2009) é um dos mais marcantes comentários musicais já realizados para o gênero. Na edição, Zeffirelli eliminou a tentação de Jesus pelo demônio no deserto e o Sermão da Montanha, assim como fizera Pasolini. O inglês Robert Powell, com a fisionomia de judeu pálido e esquálido, conforme as concepções de Lucas Cranach, El Greco, e Andréa del Castagno, é um dos grandes intérpretes de Cristo em toda história da arte cênica

O CAMINHO AO GOLGHOTA NA VERSÃO DE FRANCO ZEFFIRELLI

Elenco All-Star reunindo Anne Bancroft (1931-2005), como Madalena; Ernest Borgnine (1917-2012), o Bom Centurião, James Farentino (1938-2012), como Simão Pedro; Rod Steiger (1925-2002), como Pôncio Pilatos; James Mason (1909-1984) como José de Arimateia; Sir Laurence Olivier (1907-1989) como Nicodemus; Christopher Plummer (1929-2021) como Herodes Antipas; Stacy Keach como Barrabás; Claudia Cardinale, a Mulher Adúltera; Anthony Quinn (1915-2001) como Caifás; Peter Ustinov (1921-2004) fabuloso como Herodes o Grande; Ian McShane como Judas (ótima interpretação!); e Michael York, como João Batista. Um elenco de estrelas internacionais contando a trajetória do fundador do Cristianismo, desde o nascimento até sua ressurreição, com os habituais requintes deste grande cineasta italiano.

A Última Tentação de Cristo – EUA (1988). Direção: Martin Scorsese.

A ÚLTIMA TENTAÇÃO DE CRISTO – 1988

Em 1988, uma das obras cinematográficas mais polêmicas de todos os tempos estava por vir das mãos de Martin Scorsese. Tudo começou quando, no dia de seu aniversário, recebeu de presente da atriz Barbara Hershey uma edição de A Última Tentação de Cristo, de Nikos Kazantzakis (1883-1957). Scorsese, que durante sua juventude chegou a ser seminarista, leu com muito interesse a obra do escritor grego, que ao morrer, não pôde ser enterrado em solo sagrado pela Igreja Ortodoxa Grega. E após concluir a leitura, não demorou para que Scorsese fizesse um filme saído do romance de Kazantzakis (o mesmo autor de Zorba, o Grego).

WILLIAM DAFOE COMO O CRISTO MAIS HUMANIZADO DO CINEMA, SEGUNDO MARTIN SCORSESE

O cineasta de Taxi Driver apresentou o projeto para vários estúdios, que não se interessaram. Até pensou que um de seus atores favoritos, Robert DeNiro, pudesse ser Jesus. Por fim, a Universal, que ganhou muitos tributos graças aos bem sucedidos filmes de Scorsese, acabou aceitando, desde que Scorsese assumisse os riscos. Antes mesmo do seu lançamento em várias partes do mundo, já havia protestos. Tudo porque a obra de Kazantzakis não apresenta a figura de Cristo como um “Rei dos Reis” de acordo com as escrituras sagradas, mas sim, como um homem simples que tem a missão de carregar seu destino de semideus, quando manifesta como qualquer outro mortal seus desejos e fraquezas, inclusive o seu desejo de se apaixonar, casar e ter uma família. Acabou motivando ações por parte de radicais fundamentalistas e da extrema direita, que chegaram a incendiar cinemas e a ameaçar a vida de Scorsese e dos executivos da Universal. Acabou recebendo censuras em várias partes do mundo, e no Brasil, não foi diferente. O renomado jurista Sobral Pinto (1893-1991), assíduo defensor dos direitos humanos, mas católico fervoroso, chegou à escrever uma carta ao então Presidente da República, José Sarney, para proibir sua exibição no nosso país, carta esta publicada em 1988 no Jornal O Globo.

WILLIAM DAFOE: O CRISTO NÃO TRADICIONAL, QUE CORRESPONDE A SEUS DESEJOS HUMANOS

As manifestações contra o filme em nosso país não foram também das mais pacíficas. Até mesmo um cronista de cinema (aparentemente ferrenho católico) chegou a ameaçar o gerente e o porteiro do extinto Cine-Metro Boavista do Rio de Janeiro a leva-los à prisão a pão e água caso o estabelecimento exibisse o filme, e ainda, ameaçava-os de excomunhão. Mas nenhum protesto veio a adiantar, e a obra de Scorsese foi exibida nos nossos cinemas. Cristo (o ótimo Willem Dafoe,) é um marceneiro judeu, responsável pela feitura das cruzes com as quais os romanos crucificam aqueles que se opõem ao seu domínio. Atormentado por pesadelos e visões os quais desconhece o real significado, foge para uma espécie de mosteiro onde, através de uma decisiva e reveladora visão, toma consciência do seu papel como o tão aguardado messias. A partir de então, decide percorrer toda Israel, professando a sua crença em Deus. Acompanhando-o está um grupo de discípulos, dentre os quais Judas (Harvey Keitel), grande amigo de Cristo e seu braço direito.

BARBARA HERSHEY É MARIA MADALENA
O ASTRO DO ROCK DAVID BOWIE COMO PÔNCIO PILATOS

A partir de então o filme adentra o terreno do que o constitui em sua razão de ser (como o romance no qual se inspirou): a própria última tentação de Cristo. Vemos Cristo se casar com Maria Madalena, ter filhos – e uma amante! – e envelhecer como um homem qualquer. O vemos exultante ante sua nova condição: de fato, jamais ambicionara nada mais do que aquilo que passou a ter desde que, seduzido por um belo anjo, fugiu do sacrifício ao qual estivera destinado. O filme conta com as participações especiais do rockstar David Bowie (1947-2016) como Pôncio Pilatos, e o excelente Harry Dean Stanton (1926-2017), como o apóstolo Paulo. Destaque para a direção primorosa de Scorcese, indicada ao Oscar da categoria, Willem Dafoe como o conflituoso e atormentado Cristo e Barbara Hershey como uma ardente e apaixonada Maria Madalena (indicada ao Globo de Ouro de melhor atriz coadjuvante, a mesma que presenteou Scorsese com o livro que originou o filme). A espetacular trilha sonora de Peter Gabriel, indicada a um Globo de Ouro da categoria, é um show à parte e contribui enormemente ao conjunto da obra, em um dos poucos casos, em matéria de cinema contemporâneo, onde música e imagem se complementam de forma única e não parecem descoladas uma da outra.

A Paixão de Cristo – EUA (2004). Direção: Mel Gibson.

DIVULGAÇÃO
A PAIXÃO DE CRISTO DE MEL GIBSON

Dezesseis anos depois do polêmico filme de Scorsese, outra bomba estava para ser solta, mas dessa vez não seria um suposto ataque aos fiéis cristãos, fossem católicos ou protestantes. A bomba da vez seria supostamente lançada contra a comunidade judaica, que durante muitos séculos, foi acusada pelos católicos por serem os responsáveis pela morte de Jesus, aclamando pela sua crucificação no julgamento no pretório de Pôncio Pilatos, aliás, uma das grandes causas que provocaram o surgimento do antissemitismo.

O cineasta e ator MEL GIBSON dando instruções a Jim Caviezel durante rodagem da PAIXÃO DE CRISTO (2004)

O ator e diretor Mel Gibson, astro dos filmes de ação como a série Máquina Mortífera, sempre declarou-se católico fervoroso, e ainda, um católico à moda antiga, daqueles que assistem as missas em latim (abolida em todas as paróquias após o Concílio Vaticano II, que eliminou muitas crenças que a Igreja vinha alimentando em seus fiéis, inclusive a culpabilidade dos judeus pela morte de Jesus). A partir do Concílio Vaticano II, os judeus estavam isentos de qualquer culpa. Tanto que havia uma oração rezada todas as sextas feiras pelas almas dos “judeus pecadores responsáveis pela morte de Nosso Senhor Jesus Cristo”. Gibson pareceu seguir esta mesma cartilha e ignorar o Concílio iniciado por João XXIII e terminado por Paulo VI. O ator e cineasta iniciou a obra como um “projeto pessoal de fé”, e pouco parecia se importar com a sua importância comercial. Para comprovar o que dizia, ele bancou, sozinho, os 25 milhões de dólares de orçamento, e declarou que o seu longa seria todo falado em aramaico e latim, e não teria legendas, ele queria que as imagens falassem pelo conjunto da obra. Ainda durante as filmagens, um grupo judeu teve acesso a um dos primeiros roteiros da produção e doravante começou o boato de que o filme era antissemita e poderia engatilhar uma perseguição contra os judeus. Ironicamente, foi esta a comoção que fez Gibson mudar de idéia, introduzindo em sua obra as legendas para mostrar que havia judeus ao lado de Jesus, e ele mesmo, um judeu. A decisão de usar diálogos em latim e aramaico, sem dúvida, dá a obra uma veracidade então inédita.

JIM CAVIEZEL É O CRISTO DE MEL GIBSON – A PAIXÃO DE CRISTO (2004)

Mel Gibson não poderia ter escolhido um ator mais adequado para interpretar Jesus Cristo. Assim como o próprio diretor, Jim Caviezel é um católico fervoroso e não teme colocar sua fé antes de tomar qualquer decisão. Tanto que durante as filmagens de Olhar de Anjo (2001), com Jennifer Lopez, recusou a filmar com ela uma cena em que ela estaria com os seios desnudos. Também atuou na última versão de Conde de Monte Cristo, em 2001, como o herói Edmond Dantès. Mas a vida de Jim também não foi fácil quando foi escolhido para interpretar Jesus. Além das complicações técnicas comuns de um filme falado em uma língua morta, o ator foi pressionado ao extremo por Gibson, que ficava o tempo todo “tentando” para desistir do projeto. Evidente que o diretor não queria perder seu protagonista, mas ele queria fazer questão de deixar bem claro que aquele papel “mudaria para sempre sua vida”. Quando reafirmou sua vontade de encarnar Jesus, Caviezel ainda precisou enfrentar a “ira divina”, pois quando filmava a cena do Sermão da Montanha, o ator foi atingido por um raio. Ele assim declarou na época:

Quatro segundos antes de acontecer, tudo ficou quieto. Então foi como se alguém tivesse me dado um tapa nas orelhas. Foram uns sete ou oito segundos de cores misturadas e as pessoas começaram a gritar. Eles falaram que estava pegando fogo no lado esquerdo da minha cabeça e que havia luz ao redor do meu corpo.

O FLAGELO DE JESUS, NA VISÃO DE MEL GIBSON

A cena da crucificação não foi moleza para Caviezel, já que precisou ser erguido numa montanha em pleno inverno italiano. O filme foi rodado em Roma. A fita de Gibson conta apenas as 12 últimas horas da vida de Jesus na Terra, isto é, desde a traição de Judas até sua ressurreição (esta muito passageira). Curiosamente, o filme também foi baseado nas visões de uma freira alemã chamada Anna Katharina Emmerick (1774-1824), que descreveu de acordo com estas visões como foi a verdadeira Paixão de Cristo, e tais relatos originaram um famoso livro intitulado, A Dolorosa Paixão do Nosso Senhor Jesus Cristo, publicado pela primeira vez em 1833, nove anos depois da morte da freira alemã. O filme inicia-se no monte das Oliveiras onde Jesus é tentado pelo Diabo. Depois de ser traído por Judas (Luca Lionello), é preso e acusado de blasfémia pelos líderes dos Fariseus. Condenado à morte, é levado até Pôncio Pilatos (Hristo Shopov), o governador da Palestina, que escuta as acusações de que ele é alvo. Tentando acalmar o povo e a província, que detesta, Pilatos vai cedendo sob os olhares incriminadores de Claudia Prócula (Claudia Gerini), sua mulher, que considera Jesus um santo.

A PAIXÃO DE CRISTO (2004) de MEL GIBSON

Pilatos dá o poder de escolha à multidão entre a morte do criminoso Barrabás ou de Jesus. Eles escolhem a morte de Jesus e a libertação de Barrabás. Jesus é então entregue aos soldados romanos que o flagelam intensamente. Depois, recebe uma cruz e é-lhe ordenado que a carregue pelas ruas de Jerusalém até ao monte de Gólgota, onde irá ser crucificado. A tortuosa viagem até ao calvário é acompanhada pela mãe Maria (Maia Morgenstern) e por Maria Madalena (Monica Bellucci), sendo entremeada por alguns breves flashbacks. A Paixão de Cristo de Mel Gibson corta radicalmente com as imagens anteriores de Cristo no cinema, figurado aqui como um mártir no limite do suportável pelo corpo humano. Algumas sequências apresentadas são particularmente chocantes pela duração e detalhe na dilaceração da carne para obtenção de um efeito realista.

A DESCIDA DA CRUZ, NO FILME DE MEL GIBSON

Gibson inspirou-se em algumas pinturas famosas para encenar alguns dos momentos do filme, que é uma experiência de elevada intensidade emocional, como “A Crucificação” de Matthias Grunewald. James Caviezel, que obtém uma excelente interpretação num papel de elevadas exigências físicas e psíquicas.

A PAIXÃO DE CRISTO de Mel Gibson terá uma sequência, já sendo produzida para ser lançada em 2025, com o título A Paixão de Cristo – A Ressurreição I – deixando antever que o público poderá esperar por mais do que um único filme adicional. Gibson decidiu fragmentar a narrativa para explorar adequadamente a magnitude dos eventos pós-crucificação, uma escolha que promete aprofundar a experiência cinematográfica dos espectadores. Jim Caviezel voltará ao papel do Cristo e Maia Morgenstern como Maria, assim como alguns dos demais atores da produção de 2004.

Assista na íntegra a tradicional Vida, Paixão, e Morte de Jesus Cristo, realizada em 1905 na França e dirigida por Ferdinand Zecca, com legendas (domínio público).

NOTA DE OBSERVAÇÃO: O filme foi iniciado em 1902 e terminado em 1905.

Matéria originalmente escrita em abril de 2012, atualizada em 26 de janeiro de 2024

Paulo Telles é radialista (DRT 21959/RJ), crítico de cinema, escritor, produtor e ex-apresentador do programa de rádio online CINE VINTAGE, foi redator do extinto blog FILMES ANTIGOS CLUB – A NOSTALGIA DO CINEMA, e atualmente colunista do site CINEMA COM POESIA. Redator do Blog CINE RETRO BOAVISTA.

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https://cineretroboavista.blogspot.com/


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