Cine Rádio: “A Marca da Maldade”, de Orson Welles

Cine Rádio: A Marca da Maldade – O Clássico Atemporal do Mestre Orson Welles

Por Paulo Telles

Um magnífico estudo acurado sobre a natureza perversa do ser humano. Orson Welles (1915-1985) realiza de forma inteligente uma palestra em seus 106 minutos de projeção (versão remontada) na obra A Marca da Maldade (Touch of Evil) de 1958. Atuando também como ator no papel de Hank Quinlan, um policial pungente e corrupto que ele interpreta de forma soberba, traduz um resumo de tudo que o cineasta pretendia sugerir ao espectador, especialmente em relação às incoerências, hipocrisias e contradições que envolvem a natureza humana. Também assinala o retorno de Welles a Hollywood após nove anos de ausência. A fita teve cenas acrescentadas e montagem adulterada pela Universal à revelia do diretor.

Em 1999, foi realizada uma remontagem segundo as intenções do cineasta e deixadas para Rebecca Welles (1944-2004), herdeira e filha do diretor. Charlton Heston (1923-2008) e Janet Leigh (1927-2004), os astros principais, estiveram presentes na cerimônia pela ocasião dos 40 anos do lançamento do filme. Foi o próprio Heston quem sugeriu a Universal Pictures para que Welles assumisse a direção (anteriormente Welles só atuaria como ator). O estúdio teve medo, mas Welles cumpriu o contrato e realizou a obra no tempo certo dentro do orçamento estabelecido. Mas mesmo assim, a Universal mexeu na montagem final.

Welles tinha apenas 41 anos quando desempenhou o papel do velho e obeso policial Hank Quillan, usando uma maquiagem bem pesada. Ainda assim, A Marca da Maldade se impôs como uma de suas obras mais impactantes, cujo impacto técnico estarrecedor se revela com rara volúpia criativa em seus efeitos de câmera, som e edição (segundo o finado crítico de cinema carioca Paulo Perdigão). 

Numa cidade da fronteira do México – Estados Unidos, o investigador mexicano Ramon Miguel Vargas (Charlton Heston) interrompe sua lua de mel com Susan (Janet Leigh) para apurar um crime. O casal então é perseguido por traficantes chefiados por “tio” Joe Grandt (Akim Tamiroff, 1899-1972). Ramon acaba entrando em conflito com o veterano policial Hank Quinlan (Orson Welles), capitão da polícia local, corrupto e psicopata, com registros de perfeitas prisões. Vargas suspeita que Quinlan plantasse provas falsas para efetuar suas prisões. Determinado a manter o honesto e incorruptível investigador mexicano fora do seu caminho, ele faz um acordo com “tio” Grandt para incriminar a esposa de Vargas, que é mantida num quarto de motel, abandonada e dopada, acusada de assassinato numa das sequencias mais angustiantes do filme.

Idealizado pelo cineasta mais criativo já conhecido, A Marca da Maldade é uma obra maravilhosa que nenhum cinéfilo deve perder – de acordo com o Chicago Tribune.

Em primeiro plano, o filme parece seguir algumas características dos policiais produzidos nos anos de 1940 pela RKO, como fotografia com ampla definição de claro e escuro, um crime como ponto de partida no desenrolar da trama e as investigações que se desenvolvem acerca delas, bem como os ambientes decadentes e imundos, imoralidade e corrupção, e cenas preferencialmente noturnas que permeiam toda a composição estética da obra.

A trilha sonora de Henry Mancini (1924-1994) tem papel fundamental na trama uma vez que ela molda as cenas de forma ativa, atuando como uma importante ferramenta de continuidade que claramente situa o espectador. A Marca da Maldade sem dúvida tem diálogo inovador para o público da época do lançamento, considerada até então um tabu para o cinema norte-americano, com o Código Hays* perdendo sua eficácia. Vemos palavras como baseado, entorpecentes, picada, viagem, entre outras que fazem parte do vocabulário no mundo das drogas.

A Marca da Maldade é valorizada também pelo restante do seu cast, e muitos deles em aparições cameo. Joseph Calleia (1897-1975) tem destaque fundamental como um policial igualmente corrupto que vive a proteger o vilão Quinlan. Notável as breves aparições de Zsa Zsa Gabor (1917-2016), Joseph Cotten (1905-1994) e da talentosa Mercedes McCambridge (1916-2004), como uma lésbica pertencente à gang de Grandt.  Mas é Marlene Dietrich (1901-1992) que fecha com chave de ouro este grande espetáculo, no papel de Tanya, uma mulher de cabaré e antiga paixão de Quinlan.

Muito embora tenha sido produzido com baixo orçamento, o filme de Welles eleva-se a um requinte de produção Classe A, tornando-se uma das fitas mais assistidas e analisadas nos últimos cinquenta anos por estudantes de cinema, cineastas e críticos modernos, com temática pertinente ainda em nossos dias (como a corrupção nos meios policiais), o que faz de A Marca da Maldade uma obra atemporal.

* O Código Hays foi um conjunto de normas morais aplicadas aos filmes lançados nos Estados Unidos entre 1930 e 1968 pelos grandes estúdios cinematográficos. Seu nome deriva de William H. Hays (1879-1954), advogado e político presbiteriano e presidente da Associação de Produtores e Distribuidores de Filmes da América de 1922 a 1945. Entretanto, já na primeira metade dos anos de 1950, o código já vinha perdendo força. Alguns cineastas e produtores estavam aptos a rompê-lo. A partir de 1968, o código deixou de existir, dando lugar ao sistema de classificação indicativa, que perpetua até hoje.

Paulo Telles é radialista (DRT 21959/RJ), crítico de cinema, escritor, produtor e colunista do site CINEMA COM POESIA. Redator do Blog Cine Retro BoaVista.

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