Cine Retro Boavista: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA (1946)

Por Paulo Telles

A Felicidade Não Se Compra (1946): O Espírito Natalino de Frank Capra.

É tempo de Natal. Época em que as pessoas costumam presentear aquelas que estimam, decoramos nossas casas com árvores de natal e presépios, e não dispensamos uma ceia. Parece uma época em que as pessoas esquecem um pouco do digladio do dia a dia. Entretanto, o cinema e a TV hoje vem produzindo filmes em maior escala sobre o tema nos últimos vinte anos. Mas há mais de 70 anos, tempo em que foi realizado A Felicidade Não se Compra (It’s a Wonderful Life), produzido em 1946 e obra prima de Frank Capra (1897-1991), havia poucas produções sobre o Natal nas telonas As salas de exibição neste período do ano exibiam produções bíblicas ou histórias ligadas ao cristianismo, algo que também perdurou na televisão por algum tempo. 

o diretor frank capra

Frank Capra foi um cineasta singelo, que abordou o espírito de boa fé e a integridade do ser humano em seus filmes. Basta vermos O Galante Mr Deeds, A Mulher Faz o Homem, Do Mundo nada se Leva, e Adorável Vagabundoalicerces da cinematografia do grande componente do diretor. Seus heróis creem na bondade e na honestidade humana, onde se caracteriza a luta do bem contra o mal, e mesmo que sofram com isso, eles não abandonam suas convicções. Em A Felicidade Não Se Compra não é exceção, pois se eternizou na memória de muitos apreciadores da Sétima Arte e também daqueles que de forma incessante buscam uma vida mais feliz. E quem não quer ser feliz? É possível ser feliz? estas são algumas das interrogações que fazemos em nossas entrelinhas durante toda a projeção da fita, aliás, a preferida deste grande diretor. 

a felicidade não se compra: Larry Simms, Jimmy Hawkins, James Stewart, Donna Reed, Karolyn Grimes. 1946

Foi produzido pela firma independente Liberty, de Frank Capra e William Wyler, que faliu justamente porque A Felicidade não se Compra não se deu bem nas bilheterias. Como os direitos autorais não foram renovados, o longa caiu em domínio público em 1974 e, dessa forma, foi exibido inúmeras vezes na TV americana, especialmente na época de Natal, criando uma reputação de clássico. A versão oficial que se tem em DVD e Blu-Ray pertence hoje a Republic (que distribui pelo selo da Paramount). Apesar do fracasso, o filme chegou a ser indicado ao Oscar de melhor filme, diretor (Capra), ator (James Stewart) e montagem (William Hornbeck, 1901-1983).

James Stewart é George Bailey, um
“Boa-Praça” que gosta de ajudar as
pessoas.
Donna Reed é Mary Hatch, sua namorada,
depois esposa.

James Stewart (1908-1997, em seu primeiro filme depois de seu retorno da II Guerra) e Donna Reed (1921-1985) são as estrelas de uma história que, talvez, muitos de nós gostaríamos de viver. Entretanto, nem tudo são flores. Há empecilhos, desvios, provações, erros e problemas como na vida de qualquer mortal. O que fundamenta nesta magnífica obra de Capra é a humanidade nas relações pessoais e sociais, que podem causar danos por interesses de alguns mal intencionados, motivados pela individualidade e o egoísmo. A ambição, que costumeiramente envenenam ambientes, seja na família ou no trabalho, dá espaço para relações mais fraternas, altruístas, e solidárias a partir da ação de pessoas comuns, e em gestos comuns.

George e Mary dançam na pista, prestes
a se abrir e prontos a cair na piscina.

Não é à toa que Capra tinha um carinho todo especial por este filme mais do que os demais que dirigiu. Até ao fim de sua vida, em 1991, o diretor tinha o costume de convidar amigos pessoais juntando toda a família para assistir no cinema de sua casa ao seu original em 35 mm toda véspera de Natal. Filmado em preto & branco, o cineasta chegou a enfartar quando viu sua obra sendo colorizada por computador, um modismo que penetrou nos anos de 1980 e que colorizou outros clássicos das décadas de 1940/50 (como Casablanca, por exemplo), e até James Stewart, o astro da película, protestou. De qualquer forma, A Felicidade Não Se Compra não envelheceu, capaz até hoje de fazer com que o espectador se identifique com qualquer um dos personagens ou mesmo com toda a situação da trama.

Thomas Mitchell, de óculos, é o Sr. Billy, tio de George.
O Policial Bert (Ward Bond) e o motorista Ernie
(Frank Faylen), amigos de George.

O verdadeiro “amor ao próximo” não precisa vir em embalagens vistosas, assim prega a fita. Através de gestos simples de nosso cotidiano, se pudermos ser apenas mais cordiais com as pessoas, já forma por si só uma ação poderosa. Adicionar um pouco de esperança e otimismo no nosso dia a dia pode representar muito para as pessoas que convivem com as outras, seja na família, no trabalho (principalmente), ou nas nossas relações sociais.A alegria, a capacidade de superação, a fé e a valorização da vida e de tudo aquilo que somos, e que representamos para outras pessoas, tem que ser o pilar de nossas vidas. E eis que vem uma lição poderosa nesta obra de Capra, onde reside a ideia de nossa importância na vida das pessoas e de nossos amigos, pois ela pode afetar de modo positivo a vida delas. Naturalmente, jamais agradaremos toda a Humanidade, afinal, nem Jesus Cristo agradou a todos. Entretanto, sempre poderemos ser reconhecidos por nossos valores, seja por amigos, parentes e colegas de trabalho, e sem dúvida, a vida de um indivíduo seria bem diferente se não pudesse ele existir e fazer do dom de sua vida toda a diferença.

Lionel Barrymore (sentado) é o Sr. Potter,
que apesar de estar preso a uma cadeira de
rodas, é um homem avarento e individualista.
Henry Travers é Clarence, anjo de guarda
de George, prestes a ganhar suas asas.

Um sonho acompanha a trajetória do jovem George Bailey (James Stewart) desde seus anos de infância. Sua vida foi marcada por inúmeros percalços que tendem de tudo para não permitir que suas aspirações se concretizem. Desde cedo, quando ainda era menino, George consolida sua vida como a de uma pessoa que está por perto para ajudar ao próximo. Não de forma totalmente consciente do valor dessa participação fraterna e solidária. Desprovido de qualquer busca de valorização ou reconhecimento em função de suas ações, movido somente pelo belo coração que possui. Por esse motivo, George é capaz de ajudar pessoas, como o farmacêutico manipulador de remédios, Sr. Gower (H. B. Warner, 1875-1958), ou ainda salvando a vida de seu irmão mais novo. Sua grandeza é realçada na defesa de pessoas pobres que com dificuldade tentam construir o grande sonho de suas humildes vidas, ter uma casa própria. Nesse sentido, apesar do desconforto dessa situação, George assume a empresa de seu pai, e é deste, inclusive, que ele herda as nobres convicções de justiça e compaixão, abdicando dos lucros em favor de uma vida modesta desde que isso lhe garanta a paz.

Gloria Grahame é Violet, ex-namorada
de George.
Todos os amigos de George reunidos na
noite de Natal, prontos para ajuda-lo
em momento crucial.

Suas alegrias, apesar de alguns contratempos, ou pela deslealdade e individualidade do homem mais rico da cidade, o senhor Porter (Lionel Barrymore, 1878-1954), são ainda maiores a partir de seu casamento com a fiel Mary (Donna Reed) e com o nascimento dos filhos. Nesse momento tudo parece caminhar para um final feliz. É quando o acaso resolve lhes pregar uma peça e faz com que o dinheiro que garantiria os saldos e o cumprimento dos contratos de sua empresa simplesmente desaparece. Acuado pelas dívidas e pela possibilidade de ser preso, George fica desesperado e pensa em tirar sua vida para resgatar um seguro de vida que poderia assegurar a sobrevivência de sua empresa e a reputação de sua família É aí que entram os questionamentos. O que fazer quando sua vida parece não ter valido a pena? E se eu não tivesse nem ao menos existido, tudo seria muito melhor, não seria? Será que a minha vida foi de alguma forma importante para alguém?

Apesar de George ser prestativo com todos,
ele tem momentos de incertezas e dúvidas…
dúvidas estas que logo serão descartadas
quando ele conhecer o espírito da felicidade. O mundo é maravilhoso.
Em alguns momentos, George perdeu a fé.

Com toda essa inocência terna e singela, A Felicidade Não Se Compra é até hoje um dos mais belos filmes de todos os tempos, sendo despontado numa lista entre os melhores 45 filmes na categoria “valores humanos” de acordo com o Vaticano (que realizou uma lista de 100 melhores filmes em 1995, ano do Centenário da Sétima Arte), pois trata de temas importantes com simplicidade e de maneira tocante sem nunca parecer piegas ou pueril. Seus personagens perfeitos não caem na chatice ou na antipatia, e sim funcionam como o perfeito exemplo de como uma pessoa altruísta pode ser. Em um mundo capitalista de como era o de 1946 (ano de sua produção), pós-crise de 1929 e o início da reconstrução após a Segunda Guerra Mundial, e num mundo hoje todo individualizado, deveríamos refletir em pleno século XXI sobre o que Capra (um verdadeiro visionário) queria nos dizer naquele tempo, sobre os verdadeiros valores da vida e das relações humanas.

 a fé no amor e nas pessoas reacendeu no
espírito de George Bailey na noite de Natal.
Thomas Mitchell, Dona Reed, Jimmy Stewart, Beulah Bondi: A FELICIDADE NÃO SE COMPRA.

Partindo dessa ideia, a de que nossa existência é fundamental para o equilíbrio e para a felicidade de muitas outras vidas, que Frank Capra consolida um dos mais celebrados clássicos do cinema mundial. No elenco, destaques para Thomas Mitchell (1899-1961), Ward Bond (1903-1960), e Gloria Grahame (1923-1981). No Brasil, o filme estreou a 14 de fevereiro de 1947, fez tanto sucesso em nossas salas que ficou quase 20 anos seguidos em cartaz. Um filme para curtir e apreciar, que consegue sobrepujar as ações do tempo. Afinal, como condiz seu título original, a vida é maravilhosa, apenas depende de nós e de nossas atitudes para com o semelhante. Assim prega o inesquecível diretor Frank Capra.

Divulgação do filme nas salas do Rio de Janeiro
em reprise na década de 1960.

Assista ao Trailer de A FELICIDADE NÃO SE COMPRA (1946)

Matéria publicada originalmente no Blog Filmes Antigos Club – a Nostalgia do Cinema, em 23 de dezembro de 2016, com algumas alterações.

Paulo Telles é crítico de cinema, escritor, produtor e Radialista (DRT 21959 RJ), redator e editor do blog Filmes Antigos Club – A Nostalgia do Cinema e colunista do Cine Retro Boavista no site CINEMA COM POESIA.

Um comentário

Deixe um comentário